[12/03/2008] • 1 comentários

Ainda sem reponder ao teu desafio, recordou-me o último poema de Torga no seu Diário. Partilho-o.

Aproxima-se o fim.
E tenho de acabar assim
Em vez de natureza consumada,
Ruína humana.
Inválido de corpo
E tolhido da alma
Morto em todos os órgãos e sentidos.
Longo foi o caminho e desmedidos
Os sonhos que nele tive.
Mas ninguém vive
Contra as leis do destino.
E o destino não quis
Que eu me cumprisse como porfiei,
E caísse de pé, num desafio.
Rio feliz a ir de encontro ao mar
Desaguar,
E, em longo oceano, eternizar
O seu esplendor torrencial de rio.
(Miguel Torga, Diário XVI, p. 201)

E, já agora, um outro texto, também dele, mas ainda na "infância". Afinal o assunto nunca ficou resolvido. E em nós, para além das convicções que, imagino, uma grande parte de nós partilha, é assunto sempre a dar trabalho. E esse desejo, de uma vida que não acabe com a última pancada do coração, um mistério...
Isto de religião está cada vez pior dentro de mim. Depois de uns arrancos fundos e angustiosos, a coisa foi secando, secando, até chegar a esta mirra mística, que já não há Jordão teológico capaz de vivificar. Mas quanto mais pobre estou desse conteúdo humano, mais cheio me sinto de desespero. O que eu dava para me levantar cedo esta manhã, ir à missa, e voltar da igreja com a cara que trazia o meu vizinho ! Não é que eu tenha verdadeiramente pecados, ou que, se os tivesse, algum Deus fosse capaz de me lavar deles. (Até o último aldeão sabe que quando muda um marco não há céu que lhe benza a maroteira). Queria era sentir-me ligado a um destino extra-biológico, a uma vida que não acabasse com a última pancada do coração.
(Miguel Torga, Diário I, p. 27)

1 comentários:

Anónimo disse...

«O que eu dava para me levantar cedo esta manhã, ir à missa, e voltar da igreja com a cara que trazia o meu vizinho!»

Como há pouco consegui editar um comentário, vou tentaar de novo. Mas também é só para dizer isto:
Miguel Torga, falo de Miguel Torga e não do Dr. Adolfo Rocha, não escreveu nada que não me seduza. Até pelo que descubro nele da tragédia de uma cultura que perdeu algumas das suas raízes fundamentais. Com a agravante de enxertar nelas imagens que em vez de mostrarem escondem a verdade.
E uma delas é, por exemplo, a do vizinho que denunciaria o fulgor e a limpidez da fé pela cara com que sai da celebração dominical.
Quem sabe se esse vizinho tem alguma possibilidade de entender as palavras e Cristo, quer no Horto, quer na Cruz?
Aquele abraço.
AP

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