[20/06/2008] • 0 comentários

A pedido da Elsa, num post anterior, postei um texto do Eclesiastes. Mas não fiquei descansado. Fiquei a pensar que o pessoal poderia, simplesmente, fazer uma leitura do “bonito” que o texto é...
Acontece que o texto além de “bonito” é de facto uma pequena lição de vida inserida num texto maior que é uma grande lição de vida.
Para ajudar, espero, deixo aqui uma parte de um trabalho que fiz sobre o Livro do Eclesiastes (confiram ASENSIO V. M. Livros sapienciais e outros escritos, p. 182-208 , se quiserem saber mais).
Também espero que além de gostarem, aprendam um cadito...


O grego ekklesiastes traduz qohelet razoavelmente bem, termo em consonância com o título hebreu, língua em que poderia fazer referência à função do mestre da sabedoria de «convocar/reunir» gente da sua escola. No grego designa aquele que se senta ou fala numa assembleia. “Ainda que o nome pareça, pois designar o autor do livro como membro de uma assembleia, talvez alguém com uma função especial como a de porta-voz, nada sabemos sobre a natureza dessa hipotética assembleia: se era religiosa ou política... académica ou profissional.”
A primeira sensação que experimenta o leitor desta insólita obra é a de se encontrar fora do AT, fora até da literatura sapiencial: “a fé judia na eleição de Israel, no carácter paradigmático da libertação do Egipto e na relação de Aliança entre Javé e o povo eleito primam pela sua ausência”.


Estamos diante de um autor que se propõe uma tarefa muito mais ambiciosa que os dos Provérbios e de Job.
O primeiro, na linha da sabedoria tradicional, propõe aos seus leitores o modo de adquirir um conhecimento que assegure a existência, em todas as suas facetas de prosperidade, felicidade, longa vida e perpetuidade de nome, tendo o temor do Senhor como fio condutor. Daí que a retribuição do homem seja regulada a partir das suas obras: frutos da sua disponibilidade, e resultados do seu conhecimento orientado pelo mesmo temor do Senhor.
Em Job, encontramos uma mudança de acentos: a vítima de uma divindade, nada misericordiosa, só é capaz de suportar a sua agonia na expectativa de recuperar a sua antiga amizade com Deus, que no entanto se esconde por detrás de um impenetrável silêncio. Mas Job faz o seu caminho, sem dúvida, com a certeza de que arriscava a vida, mas com a confiança absoluta no universo e no seu Criador.
Qohelet parece não confiar nem no conhecimento nem em Deus. Não porque não cresse n’Ele, mas porque considera o homem incapacitado para gerir os dons e a presença de Deus neste mundo. “Os autores da sabedoria convencional jamais fariam sua a afirmação de Qohelet: «Detesto a vida, pois vejo que a obra que se faz debaixo do sol me desagrada: tudo é vaidade e correr atrás do vento.» (2, 17).”
Contra tudo, inicia a sua busca, parte do facto de que tudo tem o seu tempo e oportunidade. Mas, enquanto, a sabedoria convencional partia da convicção de que o esforço cognoscitivo, metodicamente dirigido, era capaz de dar com o tempo oportuno para realizar a acção certa, Qohelet não acredita que o ser humano possa desenvolver tal capacidade. É certo que tudo tem o seu tempo (cfr. 3, 17ss.), mas não é menos certo que «não existe obra, nem reflexão, nem conhecimento nem sabedoria» (9, 10) e que «o homem não conhece o seu tempo» (9, 12). “Esta é em definitivo, a mensagem do poema sobre o tempo (3, 1-8).
Nas fronteiras existenciais entre o nascimento e a morte, o homem dispõe de possibilidades significativas. O pior é que é impossível conjugar o momento adequado com a acção apropriada... O drama do ser humano radica na impossibilidade de dar um golpe certeiro no negócio da vida.” Possivelmente o golpe mais duro à tradição sapiencial se encontre em 9, 11, onde Qohelet cita textos da sabedoria convencional e utiliza criticamente o seu imaginário: «a corrida não depende dos mais ligeiros, nem a batalha dos heróis, o pão não depende dos sábios, nem a riqueza dos inteligentes, nem o favor das pessoas cultas: todos estão à mercê das circunstâncias e da sorte».
Se a sabedoria não consegue alcançar os seus propósitos, destino igual tem a honra. Assim, outro paradoxo que o nosso autor encontra é o fracasso da honra e o triunfo dos sem vergonha: «já vi de tudo em minha vida de vaidade: o justo perecer na sua justiça e o ímpio sobreviver na sua impiedade» (7, 15). Como que fica inutilizado o esforço humano. Se o sábio convencional poderia dizer a Qohelet que «o néscio cruza os braços e vai-se consumindo», este poderia responder: «mais vale um bocado de lazer do que dois bocados de trabalho, correndo atrás do vento» (4, 6ss.).
Exame derradeiro é a morte que destrói as eventuais conquistas do homem, tornando-as inúteis. “Neste contexto fica a dúvida se Qohelet deixa a porta aberta à possibilidade da vida com Deus após a morte.” O que permitiria que o homem desse as boas vindas à morte que o libertaria de um mundo oprimido pela violência e pela dor.
Surpreende numa obra canónica judia a afirmação da impossibilidade de conhecer a Deus. Consciente do mistério que envolve a Deus, em vez de percorrer o caminho da adoração, Qohelet expressa um crítico encolher de ombros. O seu Deus “não deixa pistas perceptíveis na Sua criação; a sua actividade é tão misteriosa como a Sua natureza.”
Deus constitui uma espécie de muro contra o qual se estatelam os esforços humanos por O conhecer. Qohelet arrisca neste ponto uma acusação a Deus, ao afirmar o seu convencimento da culpabilidade de Deus no fracasso cognoscitivo do homem, pois o põe à prova para lhe fazer ver que não é mais que um animal: « quanto aos homens penso assim: Deus os põe à prova para lhes mostrar que são animais. Pois a sorte do homem e do animal é idêntica: como morre um, assim morre o outro...».
Diante deste panorama, Qohelet esforça-se para reservar para o homem o disfrute dos prazeres. O único bem que acontece ao homem neste mundo desordenado é comer e beber (cfr. 2, 24; 8, 15; 9, 7-9), enquanto a idade e as forças lhe permitirem (cfr. 11, 7-10), sendo esse o pagamento pelos seus esforços. Contudo longe duma corrente hedonista, “concebe o disfrute das coisas boas como dom de Deus (2, 24; 9, 7b)”

Fica claro que Qohelet se afasta dos esquemas de pensamento e das fórmulas doutrinais oferecidas pelo AT em geral, e pela sabedoria convencional em particular. Contudo, “temos de reconhecer que é relativamente larga a lista de crenças vetero-testamentárias que a obra de Qohelet confirma implícita e explicitamente”: crê num só Deus criador, transcendente e omnipotente; numa humanidade nascida do espírito divino, mas destinada ao pó de que saiu; na liberdade do homem... Claro que está mais interessado pelo indivíduo do que pela comunidade nacional, mas trata-se de um traço típico da velha sabedoria, que comparte com Provérbios e com Job. Contudo, descreve e aceita a impotência humana diante da liberdade de Deus, o que não deixa lugar para a relação pessoal com Aquele. Por isso “nunca o vemos dirigir-se a Deus em diálogo, quer na oração quer na lamentação, para invocar a sua ajuda ou para se queixar amargamente do seu silêncio e da sua injustiça aparente”: contrariamente à atitude de Job ou dos salmistas.




Eclesiates 3, 1-8
Para tudo há um tempo,

para cada coisa há um momento debaixo dos céus:
tempo para nascer, e tempo para morrer;
tempo para plantar, e tempo para arrancar o que foi plantado;
tempo para matar, e tempo para sarar;
tempo para demolir, e tempo para construir;
tempo para chorar, e tempo para rir;
tempo para gemer, e tempo para dançar;

tempo para atirar pedras, e tempo para ajuntá-las;
tempo para dar abraços, e tempo para apartar-se.

Tempo para procurar, e tempo para perder;
tempo para guardar, e tempo para jogar fora;

tempo para rasgar, e tempo para costurar;
tempo para calar, e tempo para falar;

tempo para amar, e tempo para odiar;
tempo para a guerra, e tempo para a paz.

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